Artigo: Nos 75 anos da TV Tupi, um erro histórico precisa ser corrigido

Frei José Mojica se apresenta no auditório da sede dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril.

Por Maurício Viel

18 de setembro de 2025 — Há exatos 75 anos, São Paulo assistia à estreia da primeira emissora de televisão do Brasil: a TV Tupi, Canal 3, do grupo Diários Associados. O momento marcou o início de uma nova era na comunicação nacional. No entanto, ao longo das últimas décadas, consolidou-se uma narrativa equivocada sobre essa data histórica: a de que o chefão Assis Chateaubriand e sua equipe teriam se esquecido de providenciar aparelhos de TV para que o público pudesse assistir à emissora desde sua transmissão inaugural.


Essa versão é frequentemente contada com tom anedótico em reportagens sobre os aniversários da inauguração da TV e até mesmo em livros, como se fosse um fato. Segundo ela, poucos dias antes da estreia, os responsáveis teriam percebido a ausência de televisores em São Paulo e, às pressas, recorreriam ao contrabando para salvar a estreia da televisão brasileira.


Com base na pesquisa que realizei para o livro “TV Tupi - Do Tamanho do Brasil”, escrito em parceria com o jornalista e historiador Elmo Francfort, afirmo que essa “trapalhada histórica” nunca aconteceu. Foi, na verdade, uma criação posterior, que buscou romantizar o início da TV no país.


Uma nova luz sobre os fatos


Pesquisas recentes e minuciosas em arquivos de jornais da época, como os dos “Associados” Diário da Noite e Diário de São Paulo, revelam que o planejamento da TV Tupi incluiu, desde o início, um acordo comercial com a indústria americana RCA-Victor. Ele previa o fornecimento dos equipamentos de captação, produção e transmissão do canal, além dos primeiros 100 receptores de TV.


A parceria envolveu também a distribuidora oficial da RCA no Brasil, a loja Cássio Muniz, que ficou responsável pela montagem e instalação dos aparelhos de demonstração. A própria data da estreia da TV Tupi foi definida em função da chegada e da instalação desses receptores em pontos estratégicos de São Paulo, além do abastecimento inicial do mercado.


Os primeiros 100 televisores chegaram à cidade no dia 21 de julho de 1950, transportados em aviões Constellation da Panair do Brasil. Em apenas quatro dias, os aparelhos já estavam instalados em bares e lojas, que passaram a exibir as transmissões experimentais do Canal 3 — fato confirmado por anúncio da Cássio Muniz, publicado no primeiro aniversário da emissora, em 1951 (foto abaixo).


Além disso, reportagens publicadas em jornais paulistanos comprovam que a importação dos televisores havia sido regulamentada meses antes da inauguração. A Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil estabeleceu regras de preço e quantidade por fabricante. Três marcas — RCA, General Electric e Zenith — solicitaram a importação de 2.200 aparelhos cada, totalizando cerca de 6.600 unidades destinadas ao eixo Rio–São Paulo, a serem entregues gradualmente ao longo do segundo semestre de 1950.


"[...] era nosso dever, como Distribuidores Exclusivos dos Produtos RCA Victor, importar, receber e instalar estrategicamente os primeiros aparelhos de Televisão — a tempo e hora — para que a inauguração da PRF3-TV tivesse a massa de espectadores entusiasmados que realmente teve, pelas ruas e praças de São Paulo, diante dos bares e das lojas de nossos revendedores — nos quais — em 4 dias apenas, instalamos os Receptores de Televisão RCA recém-recebidos por Constellation, especialmente fretado pela nossa firma."


A origem da confusão


Mas, afinal, de onde surgiu a ideia de que faltavam aparelhos? A explicação está em uma atitude inesperada — e típica — de Assis Chateaubriand. De última hora, ele decidiu televisionar em circuito interno as apresentações musicais do frei José Mojica, realizadas nos dias 4, 5, 7 e 11 de julho de 1950, na sede paulista do grupo, que ficava na Rua Sete de Abril, 230, no Centro.


Essas transmissões aconteceriam semanas antes da chegada oficial dos televisores. A ideia era exibir imagem e som no auditório, no hall do edifício e até em uma praça próxima. Para atender ao pedido emergencial, de fato foi necessário adquirir algumas poucas unidades de receptores de maneira informal — o que gerou relatos sobre contrabando em algumas biografias. Mas esse improviso não comprometeu em nada o cronograma original da inauguração do Canal 3, prevista (e cumprida) para setembro.


Na ocasião, técnicos da RCA e das Emissoras Associadas (Tupi-Difusora) montaram uma central provisória no segundo andar do prédio. Às 22h do dia 4 de julho de 1950, surgiu nas telas a imagem padrão da RCA-Victor, seguida do logotipo da emissora e da saudação histórica: “Esta é a PRF3-TV Tupi de São Paulo em sua primeira transmissão!”


Tenha sido ou não uma “loucura” de Chateaubriand, o público se acotovelou no hall e nas calçadas para ver as imagens. Foi uma revelação muito grande e o entusiasmo do público era visível.


Memória e responsabilidade histórica


Essa descoberta reforça a importância da pesquisa em fontes primárias, capaz de separar mitos da realidade. A televisão brasileira nasceu, sim, em meio a desafios técnicos e improvisos — mas não por descuido ou despreparo. O sucesso da estreia da TV Tupi, assistida por centenas de paulistanos em vitrines iluminadas, foi fruto de uma operação comercial coordenada e visionária.


Ainda no campo das narrativas criadas para contar a história do início da televisão brasileira, outros dois exemplos são bons de serem citados. Chateaubriand teria sido o responsável pela falha de uma das três câmeras que iriam televisionar o espetáculo noturno de inauguração. O feito teria acontecido após ele quebrar uma garrafa de champagne, em um ato simbólico de batismo da televisão. Outra "conversa" aponta que a equipe artística não havia pensado no que exibir no dia seguinte à inauguração. Balelas.


No ano em que celebramos os 75 anos da televisão no Brasil, revisitar essa história com rigor é uma forma de homenagear seus pioneiros — e reconhecer que, mesmo quando envolvida em versões pitorescas, a verdade histórica merece sempre o papel principal.


Para aprofundar o tema e descobrir todos os detalhes técnicos da montagem da TV Tupi, acesse gratuitamente o e-book “TV Tupi - Do Tamanho do Brasil”, de Maurício Viel e Elmo Francfort, publicado pela ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão em 2020, com versão ampliada lançada em 2022. O endereço é memoria.abert.org.br/tv-tupi-do-tamanho-do-brasil-versao-ampliada-2022.


Imagem real, otimizada por inteligência artifical, mostra público no hall dos Diários Associados, assistindo à apresentação do Frei Mojica. Receptores vistos na imagem foram obtidos de impoviso para a ocasião, enquanto os primeiros carregamentos de receptores para venda e demonstração estavam a caminho do Brasil.

Leia também: Há 75 anos, nascia a pioneira TV Tupi de São Paulo

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